quinta-feira, 17 de março de 2011

Encontros

“Como feijão e arroz
Que só se encontram depois
De abandonar a embalagem...”
                               (Fernando Anitelli – Pratododia)

Eros e Psiqué (Canova)

                Não é de hoje que os versos acima transcritos me chamam a atenção por sua simplicidade e ao mesmo tempo sua veracidade, sua agudeza. Quisera assim como o poeta Fernando Anitelli, saber expressar de modo tão lúcido e claro, em versos simples e despretensiosos, verdades tão vivas e concretas da alma humana. Um rápido olhar sobre o trecho da canção acima por certo não captará o “eterno presente no tempo” que os versos contêm. A fugacidade e irreverência das palavras bem ocultam a beleza que somente o olhar vagaroso percebe. É preciso, como para apreciar um belo quadro, olhar sem pressa e espelhar-se na arte do artista, buscando a correspondência, descobrindo então o sentido que ela desvela em minha vida, ouvindo quais notas elas fazem reverberar em mim. Toda arte é uma espécie de espelho que, ornado de poesia e valor, se propõe a refletir algum aspecto do coração do observador...

                Há certa magia no fenômeno das relações humanas. Há qualquer coisa de extra temporal nelas, algo que mesmo alicerçado no chão que pisamos, consegue a façanha de desvencilhar-se do que é meramente factível e ganha o terreno do essencial, aquele campo onde somente o coração enxerga de verdade, como dizia Antoine de Saint-Exupéry. Fato é que a alma humana tanto mais livre será quanto mais disposta estiver a não se fiar em rótulos e ditames culturais descompromissados com sua verdade interior. Ora, quando então a alma torna-se livre, mesmo de suas próprias âncoras e cadeias interiores, pode dispor-se ao outro, pode abrir as comportas de si para receber de fato o que vem de fora.

                Esta é a realidade transcendente que habita na arte do encontro: ele só existe realmente quando há solidão em ambas as partes. Não uma solidão ruim como estamos acostumados a chamar de “Mal do Século”, mas uma solidão originária, ontológica, constitutiva do ser humano. Uma solidão inefável, que cada um de nós traz em si. E que vivida de modo saudável, proporciona crescimento humano e vida interior.

                Para voltarmos a refletir sobre os versos que iniciam nossa reflexão, façamos primeiramente um exercício de imaginação que há de nos orientar para desvendarmos os versos da canção, e descobrirmos o profundo sentido de versos tão simples. Façamos o exercício: tome em suas mãos a sua própria alma, e o que nela existe de mais profundo, de mais essencial; cubra-se de qualidades que julgue mais relevantes em si, ou das que sejam mais necessárias na vivência de um relacionamento, seja ele qual for. Cubra-se também de suas certezas, julgamentos, opiniões, razões e conceitos. Agora, ponha em frente de si outra pessoa, outra alma, outro ser embalado nas mesmas realidades típicas de cada um, as mesmas particularidades com as quais você mesmo se ornamentou para o relacionamento. Por fim, ao ter imaginado tal situação, seja honesto e sincero e diga: Houve realmente encontro?
                
                Creio ser esta a profunda questão presente nos versos de Fernando Anitelli, que tanto tem me feito pensar em mim e nos meus “encontros” ultimamente. “(...)Só se encontram depois de abandonar a embalagem”. Não há encontro se não se rompem os lacres interiores. Não há encontro real sem solidão que o preceda. Ponha-se entre uma multidão de desconhecidos e de repente encontre nela um rosto familiar, e entenderá do que falo. Quando abandonam-se as embalagens e dá-se o encontro, as duas solidões não se diluem ou se anulam, mas se acompanham, são partilhadas. E acerca de partilhar, o que dizer? Sobre isto falaremos numa próxima oportunidade. Por hora convido você, caro leitor, a pensar nos seus encontros assim como eu tenho pensado nos meus. Numa cultura contemporânea permeada de superficialidades, frivolidades, aparências e embalagens, abandonar as cavernas que nos ocultam os outros e nos ocultam dos outros é uma aventura que nos traz medo e insegurança. Eu penso nos meus encontros e percebo que, em muitos aspectos, ainda estou muito aquém de vivê-los plenamente fora das embalagens. Descubro que ainda sou meu próprio carcereiro em muitas coisas, e há muitos embrulhos e embalagens a serem abertos. Convido-o a fazer o mesmo: busque-se, desarme-se, conquiste-se... ENCONTRE-SE!

R.C.A
02 de março de 201108:10h
Metrô do Rio de Janeiro.

2 comentários:

  1. Gratidão a Carolina Gambati, uma menina prodígio que fez todo o visual do blog.

    Desfrutem

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  2. É engraçado o modo como as pessoas entram nas nossas vidas, e sem que percebamos já tomam um lugar especial nela, seja de credos, valores, estilos diferentes. As pessoas são como são e nós a amamos assim. Mas é chato também como pessoas queridas, que trocamos confidências, intimidades, brincadeiras.. se afastam e tomam caminhos diferentes do nosso, e que antes eram tão amigas, se tornam pessoas estranhas, distantes. Como já dizia, Vinicius de Moraes: "A vida é a arte do encontro, embora haja tantos desencontros nesta vida."

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